Empreendedores apostam em consórcio para vender mais lingerie e até Tupperware

Com a pandemia da Covid-19, o crescimento de consórcios informais, feitos em forma de autofinanciamento, foi bastante expressivo.

Participar de consórcios não era comum na vida de Iraci Piccinato. Por mais que ela conhecesse o modelo, nunca teve interesse em utilizá-lo para adquirir imóveis, veículos ou algum outro bem. Foi em 2020, durante a pandemia da Covid-19, que a aposentada de 66 anos decidiu mudar este padrão e participar de um consórcio inusitado: comprou uma cota em um consórcio de Tupperware.

“Foi uma experiência muito positiva, já até avisei que quero participar novamente. Antes eu comprava Tupperware de forma esporádica, nunca em grande quantidade”, conta. 

Ela conheceu o consórcio de Tupperware por meio de uma parente, e decidiu adquirir uma cota de R$ 30 por um período de 10 meses –valor menor que o de cotas mais tradicionais no mercado, que costumam variar entre R$ 500 a até milhares de reais, e porem durar vários anos, a depender do bem.

Ao ser sorteada, Iraci recebeu R$ 300 para gastar especificamente em produtos da marca. “Não é muito comum gastar tanto dinheiro de uma vez com Tupperware. Por isso, fazendo o consórcio, a gente não sente no bolso e, no fim, pode comprar produtos de mais qualidade, que não compraríamos porque são mais caros”, explica.

Segundo ela, é como se o consórcio ajudasse-a enganar o próprio cérebro de uma maneira positiva. Apesar de o valor da cota não prejudicar sua organização financeira, seria difícil economizar por conta própria. “São R$ 30 todo mês. Então, se eu fizesse isso sozinha, sempre iria acabar gastando o dinheiro com outra coisa.” 

A organizadora do consórcio ao qual Iraci aderiu é Sônia Maria Tierno. Ela começou a fazer consórcio de Tupperware em fevereiro de 2020, antes da pandemia começar. Ela conta que, ao contrário de suas expectativas, as vendas aumentaram em grande quantidade durante o período de quarentena. “Achei que seria bem ruim, mas a procura foi tanta que neste ano vamos dobrar o número de turmas oferecidas para consórcio”, afirma.

A ideia de implantar este modelo de vendas surgiu para que Sônia Tierno pudesse atingir mais facilmente suas metas comerciais. Sendo vendedora autônoma, ela não teria condições de parcelar uma Tupperware em 10 vezes, por exemplo.

Com o consórcio, ela consegue garantir para suas clientes o pagamento de pequenas parcelas e, também, garantir para si mesma a entrada de um valor base todos os meses. “A aceitação foi tão boa justamente por ser um consórcio barato e que dura menos de um ano para sortear todos os participantes”, diz.

O sorteio é realizado de forma caseira. Uma das filhas da vendedora costuma gravar a mãe sorteando o nome da cliente agraciada e, depois, envia este vídeo em um grupo de WhatsApp com todas as participantes.

O preço dos produtos de Tupperware vendidos por Sônia varia entre R$ 9,90 a R$ 250. Ao ter um maior aporte financeiro disponível para ser gasto, a tendência de seus clientes é comprar produtos que não comprariam de maneira individual, como foi o caso de Iraci Piccinato. 

Para tentar fugir de calotes, Sônia só aceita nos consórcios pessoas com indicação. Também trabalha somente na cidade de São Paulo. “Claro que algumas clientes conhecemos mais e outras menos, mas isso evitou que tivéssemos qualquer problema de inadimplência ou outros transtornos”, afirma.

BOLETO SÓ PARA CONHECIDOS

O casal Janai Levi e Quezia Araujo também faz consórcios de Tupperware. Eles oferecem três opções de cotas aos seus clientes: R$ 30, R$ 50 ou R$ 100. Todas possuem duração de 10 meses e, quando sorteado, o cliente pode retirar R$ 300, R$ 500 ou R$ 1.000 em produtos, respectivamente.

Eles atuam em 35 cidades de todo o Brasil e já atenderam 423 clientes. Para se proteger de calotes, usam a modalidade de assinatura no PagSeguro, em que todos os meses o valor do consórcio é debitado do cartão de crédito do participante. 

“A nossa maior dificuldade hoje é atender clientes que não possuem cartão de crédito. Só fazemos consórcio por boletos para clientes antigos e pessoas conhecidas”, diz Jani Levi.

CONSÓRCIO DE LINGERIE E MODA SUSTENTÁVEL

A veia empreendedora do autônomo brasileiro não está restrita ao setor de Tupperware. Francielle Ferreira conquistou dezenas de clientes ao lançar em sua loja consórcios de lingerie. As cotas oferecidas pela microempresária são de R$ 50, com duração de 10 meses. Ao serem sorteadas, as clientes podem gastar R$ 500 em lingerie.

A ideia surgiu para tentar conscientizar a respeito de consumo sustentável. “Queremos trabalhar a moda sustentável, não queremos que nossos clientes comprem por impulso. Ao participar de um consórcio, a compra é muita mais assertiva, pois a pessoa pode se programar e saber exatamente o que vai retirar”, afirma Francielle. 

Para ajudar no planejamento de suas clientes, os consórcios realizados em sua loja têm um único sorteio. No primeiro mês, cada participante já sabe quando poderá retirar sua compra. “Este planejamento faz com que as clientes comprem peças de maior qualidade. De forma individual, não seria comprada uma lingerie de R$ 80, e sim uma de R$ 40, que vai gerar mais lixo para o meio ambiente”, diz. 

Nos últimos três anos, Francielle Ferreira já organizou 24 rodadas de consórcio. Ela conta que muitas de suas clientes costumam comprar até três cotas de forma simultânea, já planejando quais itens querem retirar em cada um dos sorteios.

Para sua loja, o consórcio também garante a entrada de uma receita recorrente, e isso permite que ela possa organizar seu estoque conforme a necessidade das clientes. “Ao participar do consórcio, elas informam o tamanho que vestem. Assim eu consigo saber quais tamanhos tenho de comprar em cada mês, evitando compra excessivas e diminuindo o lixo gerado”, diz.

Em todas as 24 rodadas, a microempresária sofreu com apenas um caso de inadimplência. Para evitar este problema, ela realiza um contrato firmado em cartório, que dispõe de todas as características e regras do consórcio, e dos dados das participantes.

Francielle Ferreira também relata que, durante os meses de quarentena, a procura online pelos consórcios de lingerie aumentou. “Vendemos muito. Para receber as clientes que chegaram através da internet, implantemos a entrega sem custo”, diz.

CUIDADOS A TOMAR ANTES DE ADERIR

No Brasil, a atividade de consórcios é oficialmente regulada pelo Banco Central, que fornece autorizações para as administradoras. Essas administradoras, por sua vez, possuem representação através da Abac (Associação Brasileira de Administradoras de Consórcios). 

O advogado Leonardo Baptista Rodrigues Cruz, sócio de Regulatório Bancário e Transações Financeiras do escritório de advocacia Pinheiro Neto, explica que consórcios realizados sem uma administradora responsável estão em desconformidade com a regulação. 

Com a pandemia da Covid-19, o crescimento de consórcios informais, feitos em forma de autofinanciamento, foi bastante expressivo. “Esse universo de consórcio possui um volume muito menor de vendas e de valor de cota. Então, acaba sendo impossível regular cada um deles”, diz o especialista.

Para Rodrigues Cruz, o principal problema ocorre quando consórcios informais atingem um número alto de pessoas. Nesses casos, é comum encontrar situações ligadas a fraude. “Principalmente quando o cliente não conhece os responsáveis pelo consórcio, existe o risco grande de ele aportar seus recursos na esperança de ser sorteado e, então, o responsável simplesmente sumir”, afirma.

Para se proteger, a recomendação é entrar no site do Banco Central e verificar quais administradoras estão regularizadas. Com a sofisticação do mercado, o especialista pontua que existem consórcios de diversos tipos e com tempos de contribuição bastante distintos.

“É preciso estar atento e desconfiar sempre de consórcios que garantem a contemplação em um prazo muito curto, como um ou dois meses.”

Ele também recomenda, por exemplo, formalizar o consórcio por meio de um contrato para trazer mais segurança para o cliente e para o vendedor. 

ALTA DE CONSÓRCIOS NA PANDEMIA

Não foram apenas lingeries e Tupperwares que tiveram mais procura. Vitor Cesar Bonvino, presidente regional da Associação Brasileira de Consórcios (Abac) para São Paulo, reforça que a busca por consórcios aumentou de forma generalizada durante a pandemia.

Ele define essa alta como uma “grata surpresa”. Segundo a associação, a venda de cotas começou a crescer em maio e fechou o ano com 4,8% de acréscimo.

“Acredito que, em casa, as pessoas puderam ser abordadas pela educação financeira, compra planejada e juros baixos”, diz Bonvino. “Elas podem ter percebido que a poupança não é mais vantagem e entendido que seria melhor preparar suas compras por meio de um consórcio.” 

Com este movimento de alta, o consórcio que mais vendeu, de acordo com a agência, foi o de automóveis leves (49%), seguido pelo de motos (31%), imóveis (15%) e caminhões (4,5%).

A respeito de consórcios menores, como os mencionados de Tupperware e lingerie, Bonvino acrescenta que estes não são registrados na associação, e que provavelmente não conseguiriam o registro do Banco Central.

“O Banco Central exige capital mínimo de R$ 1 milhão em caixa, entre outras exigências. Isso tudo tem um custo muito alto e muito difícil para pequenos negócios”, explica.

MUDANÇA DE PÚBLICO-ALVO

A venda por meio de consórcio não é novidade, mas este modelo de negócio enfrenta certa resistência por parte dos mais jovens – muitas vezes por desconhecimento. Pensando em atrair esse público, foi criada a Mycon, fintech especializada em consórcios e administrada pela instituição Coimex, fiscalizada e autorizada pelo Banco Central e pela Abac.

O desafio é ir além de apresentar o modelo de consórcio para a geração millenium: é apresentar a importância do hábito de economizar e de se planejar financeiramente. “Nossa estratégia para isso foi criar uma comunicação mais séria, transparente e objetiva”, afirma Marcio Kogut, CEO da empresa.

Com isso, 73% das vendas já é realizada para pessoas com menos de 35 anos. Entre os consórcios oferecidos, 8% dos contratos são voltados para serviços, como reformas, festas de casamento, formaturas e até cirurgias plásticas.

Para diminuir o risco de inadimplências, a empresa analisa o crédito de seus clientes antes de assinar o contrato. Então, o consórcio só pode ser contratado caso o valor da parcela não comprometa mais de 30% da renda do cliente interessado.

Isso é fundamental principalmente em consórcios de serviço, quando não há um bem que pode ser devolvido caso as parcelas não sejam pagas.

Mariangela Castro, da CNN Brasil Business* 28/01/2021